domingo, 30 de janeiro de 2011

A Janela de Godard: Nossa Música

  
  “O que vemos diante de nós é uma história sem pensamento, como se herdada de uma vontade impossível. Mais do que nunca, sem dúvida, estamos diante do nada.” 

  O inferno, o purgatório, o paraíso. O som, o texto, a imagem. A ficção, a realidade, o imaginário. A política, a poesia, o ser humano. O pensamento, as cores, as luzes. A certeza, a incerteza, a ilusão. O sofrimento, a morte, a vida. A música, o cinema. O ser humano, a música. Nossas contradições, nossa arte. Nossa Música.

  Nossa Música (Notre Musique, 2004) é um filme-ensaio, que tal qual como a Divina Comédia de Dante, estrutura-se em três reinos: Inferno, purgatório e paraíso. Nós, espectadores, somos conduzidos por vários momentos, várias linguagens, vários pensamentos. Somos envolvidos pela multiplicidade de perspectivas através da Janela de Godard.
  
  No inferno, guerras, sofrimento, dor, violência, morte. As imagens são pontuadas por belíssimas peças de piano, alguns segundos de silêncio e umas poucas palavras. O brilho das cores, mesmo quando a fotografia é em P&B, parece destacar os sentimentos de dor. Em determinados momentos, o estrondo do som do piano parece lembrar o sofrimento pungente. A guerra, a destruição, a agonia. “Perdoa nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tenha ofendido. Sim, como nós perdoamos, perdoa-nos.” A questão do perdão é apresentada, tocando num ponto delicado: a vítima é quem pede perdão. Quem está a sofrer, deve pedir perdão, mesmo que nada tenha a ver com a culpa. A culpa, o arrependimento e o perdão nem sempre estão juntos e isso não é difícil de visualizar onde vivemos, embora nos digam justamente o contrário.

  O purgatório é o momento mais intricado da película. Os personagens não são entrelaçados por um fio condutor, o foco passeia por uma vastidão de perspectivas. O cenário é a Sarajevo atual, palco das guerras mundiais e da guerrilha (92-95). Uma cidade marcada. “Quando tudo termina, nada mais é como antes. A violência... A violência deixa marcas profundas.” O nosso purgatório é onde vivemos, um lugar de feridas abertas... “Matar um homem para defender uma ideia não é defender uma ideia. É matar um homem.”

  As questões que envolvem o conflito Israel x Palestina são introduzidas por Olga, uma jornalista francesa e judia de origem russa. “Já um amigo em Haifa, diz que não sonha com o inimigo, mas com ele mesmo. Não com Israel, mas com a Palestina.” Olga entrevista o embaixador francês e um poeta palestino. Num ponto, a ideia de que os escritores não sabem o que falam, que quem age não tem tempo para contar, quem conta é apenas observador. “Homero nada sabia sobre batalhas, massacres, triunfos, glória. Ele era cego e estava entediado. Precisava se contentar em contar o que os outros fazem.” No outro ponto, o poeta palestino, diz que não há mais espaço para Homero, que os troianos necessitariam de um poeta para contar a sua história. Não se pode contar a história de Tróia pela boca de um grego e ele tenta ser o poeta dos troianos, o poeta dos vencidos. “Pode um povo ser forte sem escrever poesia?”

   
  “Se nossa época alcançou uma interminável força de destruição, é preciso fazer uma revolução que crie uma indeterminável força de criação, que fortaleça as lembranças, que delineie os sonhos, que materialize as imagens”.


  Godard, interpretando ele mesmo, ministra uma palestra sobre texto e imagem. Introduz-nos os conceitos de campo e contra campo. Como exemplo, mostra duas imagens de um filme de Hawks e afirma que se olharmos bem para as fotografias, veremos que, na verdade, se trata da mesma imagem repetida. “Isso porque o diretor é incapaz de ver a diferença entre um homem e uma mulher.” Imaginação, visão. Ficção, realidade. Certeza, incerteza. “A verdade tem duas faces”, constante que aparece algumas vezes ao longo da película. Os israelitas entram na água rumo à Terra Prometida, os palestinos entram na água rumo ao afogamento. Campo e contra campo. Um se torna ficção, o outro documentário. A mesma imagem. “O princípio do cinema: ir até a luz e apontá-la para a nossa noite. Nossa música.”

  A reconstrução da ponte de Mostan, simbolizando a passagem da culpa pelo perdão. “Duas faces e uma verdade: a ponte.”

 “É como uma imagem que vem de longe. São duas, lado a lado. Ao lado dela, estou eu. Ela nunca vi. Mas me reconheço.” Nesse momento, a imagem é desfocada. Olga se aproxima e o foco retorna quando chega perto. Ela olha em direção à câmera como se estivesse a encarar uma pessoa. O quadro que vemos a seguir, mostra Olga de costas, como se quem ela estivesse a olhar fosse ela mesma. Indescritível.

  Há vários outros momentos que gostaria de destacar, devido à já citada multiplicidade de olhares que visualizamos no decorrer da película. Mas para não estender demasiadamente o texto, vamos à última parte: o Paraíso. Neste reino, vemos Olga num lugar bonito, predominantemente verde, que supostamente exala paz. Não fica muito claro – o filme não deixa as coisas muito óbvias no geral –, mas o fato do lugar estar “protegido” por fuzileiros da marinha norte-americana me parece uma sátira à hegemonia dos EUA sobre o resto do mundo...

  Nossa Música é uma reflexão. Reflexão sobre o mundo, sobre o ser humano e as questões que os entrelaçam. E como toda boa reflexão, não nos dá respostas óbvias, mas acende questionamentos. Inferno, Purgatório e Paraíso são extensões da nossa realidade. Só não sabemos muito bem onde começam esses reinos supostamente imaginários e termina o nosso mundo e vice-e-versa. Não há uma linha divisória: estamos no Paraíso, no Purgatório e no Inferno. Tanto a visão quanto a imaginação fazem parte do ser humano. Feche os olhos, olhe lá... Godard nos traz o pensamento em forma de arte. “Pode um povo ser forte sem escrever poesia?” Como sobreviveria um povo sem arte?


sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

O que temos aqui?

O que temos aqui,
se não me olhas nos olhos?
Como podes me ver,
sem sentir coisa alguma?

O que temos aqui
entre o frio e o silêncio?
Como podes fingir
que algo temos aqui?

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

A Batalha do Chile, a Luta de um Povo Sem Armas


      “O cineasta não é um observador neutro e desapaixonado da realidade. É um participante ativo.”
                                                                                                                Patricio Guzmán, cineasta

   Me parece que a História Oficial geralmente tende a afastar de nossos olhares a História onde o povo figura como sujeito, e não apenas como observador distante. Isso gera um distanciamento, uma sensação de impotência popular. É o mecanismo perfeito para afastar a História dos que a construíram. 

  Patricio Guzmán, em “A Batalha do Chile”, captura um momento bastante difícil (e significativo!) da história do Chile e da América Latina: o governo de Salvador Allende e o golpe de Estado que o derrubou. A tentativa de chegar ao socialismo por via democrática, impedida pelos esforços da oposição e dos EUA, engendrou uma complicada situação.

  O documentário mostra o desenrolar da luta de classes, acirrada pelas crises, até o advento do golpe de Estado. Na verdade, não se apresenta tão linear assim. A película é dividida em três partes: A Insurreição da Burguesia, O golpe de Estado e O Poder Popular. Na primeira parte, visualizamos, em primeiro plano, os esforços dos opositores para derrubar o governo da Unidade Popular. A direita – Partido Nacional e Democracia Cristã – possuía maioria no Congresso e fazia disso um poderoso instrumento contra Allende e os intentos de alcançar o socialismo. Em sua última cena, o cinegrafista argentino filma sua morte a tiros vindos das mãos de um oficial do exército. É um prenúncio para o que vem a seguir: O Golpe de Estado.

  Como o nome já anuncia, a segunda parte do documentário traz os momentos que “preparam” o golpe. As crises, as greves nos transportes, as contradições na esquerda, o fascismo de grupos de extrema-direita, as conspirações militares. A oposição, com o auxílio dos EUA, atirava para todos os lados, espremia o governo com todos os artifícios “legais” e ilegais que lhe valessem. Apesar da tentativa de aproximação de Allende, a Democracia-Cristã negou o acordo com o governo. Com a estrutura chilena já bastante tensionada e o governo sendo golpeado a duros punhos, o caminho para o golpe foi aberto. Em 11 de Setembro de 1973, o Palácio do Governo é bombardeado por Pinochet. Salvador Allende, antes de sua morte, deixa um belo discurso. Um discurso de um homem que tentou instaurar o governo do povo valendo-se da estrutura democrática. Mas a estrutura democrática não parece tão democrática assim.

  Na última parte, O Poder Popular, vemos um povo com consciência, organizando-se para que o poder chegasse realmente nas mãos dos trabalhadores. Porque apesar das várias nacionalizações e das tentativas de fazer andar o processo revolucionário, o Chile ainda era sufocado por um Estado Burguês. Dois, na verdade. O imperialismo estado-unidense estava ali, fomentando as crises. Diante das várias barreiras em sua frente, o povo articula-se para neutralizar a crise, utilizando-se de cordões industriais, comitês camponeses, abastecimento comunitário e de sua principal arma: a força popular. É essa força que faz ecoar o lema: “Criar, criar, poder popular”. Assim, os trabalhadores chilenos atuam como sujeitos, questionando, organizando, intervindo e agindo. E para os que dão ouvidos unicamente à História dos opressores, o povo mostra que não é apenas número, massa impotente, rebanho manipulável...

  A Batalha do Chile: A Luta de um Povo Sem Armas documenta a transformação de um sonho em ruínas e a construção de um governo opressor em cima delas. Mais que isso: não deixa a memória se esvair. Nas palavras de Guzmán: “No Chile, demoliu-se tão sistematicamente a imagem do governo Allende nos últimos 30 anos que tenho a impressão de que o filme é a única prova de que aquilo existiu”.


Outra vez advertindo

Trago aqui o sinal de uma emergência,
Toco o alarme ao povo vencedor.

É preciso juntar força e consciência,
O Chile é uma batalha de existência
- Batalha da honra e do amor.

                                             Pablo Neruda




sábado, 22 de janeiro de 2011

Os Sonhos Não Sangram

   Numa de minhas viagens ao interior, estive observando figuras de um cotidiano do qual eu não participava. O nome da cidade não é importante, acho que nem lembro qual é. O que importa é o que guardei. E nessa caixa de lembranças bem marcadas, encontra-se um certo senhor.

  Devia ter uns 50 anos e provavelmente havia passado a maior parte da sua vida na lavoura. Tinha as mãos calejadas e a face com marcas de sol, mas era relativamente alto e forte. Ainda tinha muita força para trabalhar, dizia. Trabalhava para um grande proprietário desde que seu pequeno pedaço de terra foi tomado pelo banco. (Eu também trabalhava para esse mesmo proprietário, só que numa empresa urbana – pra você ver!) E a vida era dura, sim. Mas ele ainda carregava um sorriso em seu rosto grosseiro.

  Porém não foi isso que me surpreendeu nele. O que me despertou a minha curiosidade nele era um hábito, eu diria, peculiar. Depois da sua árdua jornada de trabalho que começava às quatro da manhã e terminava ás seis da noite, ele jantava e se dirigia para o que ele denominava “fábrica de sonhos”. Não era nada que coubesse nas minhas tentativas de visualizar uma “fábrica de sonhos”, era apenas uma oficina de artesanato. Mas ao vê-lo manusear aquilo com tanto esmero, ao observar seus olhos brilhando ao me mostrar a transformação do barro em escultura, senti que era algo a mais.

  Um dia desses estava a conversar com ele, enquanto ele capinava e preparava a terra (Juro que ajudaria no serviço dele se o sol e o cansaço físico não me impedissem). Disse que as peças dele eram maravilhosas e perguntei qual era a sua motivação para criar coisas tão belas no meio daquilo tudo. Ele me disse que não precisava de motivação, o que ele fazia era sua motivação, que o artesanato era o seu sonho. E disse também que isso era a única coisa que não podiam ferir. Podiam ferir sua liberdade, suas mãos, seus direitos... Qualquer coisa... Mas não podiam ferir seu sonho, pois não conseguiriam alcançá-lo. Não tirariam dele uma gota de sangue, porque os sonhos não sangram...

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

No Meio de Tudo os Engenheiros do Hawaii...

Por que eu demorei tanto para dar atenção aos Engenheiros do Hawaii? Se eu acreditasse em destino, que tudo está escrito, que tudo tem uma hora certa para acontecer ou coisas do tipo, certamente encontraria facilmente uma resposta. Mas não, nem tudo tem que ter explicação... Se bem que a companhia da banda tem sido “providencial” nesses últimos tempos... Mas deixemos essa história de destino para lá. O fato é que fui injusta com a banda.
Acho que foi em 2008 que fui “realmente apresentada” aos Engenheiros. Certamente já havia ouvido alguma coisa, mas sem “parar para ouvir”. E, ouvir música sem prestar atenção não é ouvir música (sou chata mesmo!). Acontece que o amigo que me mostrou a banda é daquelas pessoas que querem mostrar tudo ao mesmo tempo, de modo que ele ficava repetindo: “você tem que ouvir essa!” e acabava passando as músicas e não parava em nenhuma. (Bons tempos!)
O tempo foi passando, e volta e meia no “você tem que ouvir essa música” figurava o Engenheiros do Hawaii. Mas eu não tinha a decência de parar para ouvir um álbum. Até que há alguns meses atrás resolvi – não me pergunte o motivo, que não vou saber – dar uma chance à banda. Só não sabia eu que estava dando chances a mim mesma...

Eis a culpada, a canção que me “obrigou” ouvir mais essa banda maravilhosa...



E a que constantamente fica martelando aqui...



segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Inverso...

Curiosamente, minhas trilhas sonoras prediletas – Into the Wild(Na Natureza Selvagem) e Diários de Motocicleta – foram ouvidas antes que eu assistisse aos respectivos filmes. Bem antes, questão de anos.
Porque eu demorei tanto tempo para assistir aos filmes se tinha gostado tanto da trilha sonora? Eu não sei. O que eu sei é que foi interessante ver como a música “se encaixava” em cada cena, como complementava “a atmosfera” do filme, como catalisava as emoções, como se integrava à fotografia... “Conhecer ao inverso” me oportunizou um olhar diferente, o sabor de conhecer novamente o já bastante conhecido. As trilhas trouxeram mais beleza aos filmes, e principalmente, sensibilizaram esse inquieto coração que vos escreve. 
As produções se tangenciam no ponto em que se mostram – pelo menos aos meus olhos – como buscas... Buscas pela verdade, pela liberdade, pelo conhecer, pelo vivenciar. Cada uma apresenta-se a seu modo, obviamente. Mas no fundo, os espectadores que se sensibilizam, o fazem pelo mesmo motivo, porque suas vidas também são cheias de buscas ou desejos de buscas e os filmes parecem acender questionamentos e identificações pessoais.
Essa “aproximação” que as películas permitem com os que assistem ocorre porque os enredos não se desenrolam com distanciamento, poderia ser qualquer um de nós naquelas situações. Claro que há os floreios cinematográficos, mas o que “chega”, o que marca, o que fica em que assiste são impressões humanas, reais. De fato, foram baseadas em fatos reais, mas se não fossem, não importaria, “chegaria” do mesmo jeito. Ouso dizer que se você assiste sem esse conhecimento prévio de que são produções baseadas em escritos de experiências de certos “alguéns”, não pensaria nesse aspecto.
Não sei se isso ocorreu a mais alguém, mas acabo relacionando esses filmes à reflexão da vagueza de certos conceitos arraigados em nós. Liberdade, justiça, sensatez, sucessos, obrigações, progressos, certos, errados, bons, maus... Isso tudo é facilmente moldado pelas morais e inclinado para interpretação mais confortável, não para todas as pessoas, mas para manter intactas as vestes superficiais do jogo de interesses que chamamos de sistema social. Acabamos criando uma “consciência de rebanho” ao aceitarmos essa cadeia de contradições que nos é imposta e nos distanciando das relações humanas, da natureza, da memória viva. Acredite, o simples conhecer pessoas, lugares e histórias nos afasta dos artificialismos e nos faz sentir mais próximos de nós mesmos e de tudo o que nos cerca. 
Para completar, os filmes possuem ambientações belíssimas. Da Natureza Selvagem de Into The Wild à vasta e maravilhosa “América Latina que não é mostrada nos livros”de Diários de Motocicleta. Não poderia deixar de citar esse aspecto, mas não tenho muito a falar dele, é melhor que vejam...
No mais, só dois belos filmes somados à deliciosas trilhas sonoras que lembram que nosso sangue corre em veias e não em fibras óticas. 

Sabe aquela estória de não se julgar um livro pela capa? Acho que isso não se aplica aqui... Podem julgar esses filmes pela trilha sonora...



quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Sem Título

Atrasado. Ah, novidade! Eu já estou acostumado aos atrasos de ônibus, mas imaginei que pelo fato de estar mais estressado que o usual seria poupado desse incômodo cotidiano. E hoje é bem pior, porque não é o coletivo de todos os dias, é um interurbano. Tenho que resolver os pepinos da empresa sabe se lá onde. Só sobra para mim.
Tenho reclamado muito ultimamente. Não me leve a mal, mas é que estou farto disso tudo. Pode soar “revoltado demais”, mas é que cansei. Cansei de fazer tudo certinho e nunca acertar integralmente. Não é preguiça, não é que não tenha vontade de acertar. É que parece que nada é suficientemente bom, que nunca – por mais que se esforce – o certo é integralmente certo. Mais que isso, cansei de nunca me permitir viver por causa disso. Então você me pergunta por que estou fazendo essa viagem de trabalho que tanto me irrita. E te digo, não sei. Talvez porque seja covarde o bastante para fazer o que penso, para combater o que me incomoda. Talvez por que seja mais fácil ficar assim, mesmo que isso me traga umas rugas a mais. Talvez porque as coisas não funcionam deste modo, não posso ceder aos meus instintos, tenho que dar razão à razão, dar razão ao que é certo. Pronto! Caí na minha própria armadilha, acabei fazendo exatamente o que tanto critico, aquilo que tanto me farta. E depois me pergunto por que poucas pessoas aguentam minha conversa...
Nesse ponto da minha mesquinha reflexão interior, sou interrompido por alguém (ainda bem, provavelmente já estava te deixando farto...). Uma garotinha de uns dez ou doze anos faz-me gentilmente um pedido:
– Moço, posso me sentar ao seu lado?
– Pode sim. Respondi secamente, deveria ser mais educado, mas minha impaciência me impedia.
– Obrigada. Poderia me responder uma pergunta?
Pensei automaticamente naquela frase usual: “Já está perguntando!”, mas me contive, afinal era uma criança. Penso que a arrogância não deve ser usada com crianças, é coisa de adulto. Tentei ser educado, mas como não estava para conversas, acabei sendo indelicado:
– Posso, mas já vou avisando que estou de mau humor. E onde estão seus pais? Deveria estar com deles e não falando com um estranho!
– Calma, moço. Minha mãe está logo ali, ela é funcionária daqui. Só queria perguntar porque estava falando sozinho.
– Eu? Falando sozinho? Acho que ouviu demais... Ou pensou ter ouvido demais?
– Não, estou falando sério.
– Droga! Ah, desculpa... É que às vezes resmungo um pouco alto.
– Falar sozinho não é problema. Só acho que quando está com problemas, é melhor conversar com outra pessoa.
– Quem te disse que estou com problemas? Falei num tom mais alto do que seria normal para uma conversa e todos me olharam com aquela cara de reprovação por estar gritando com uma menininha. Constrangido, pedi desculpas a todos, e disse que era por causa do meu péssimo humor. O que não convenceu ninguém, até que a garotinha que eu não sei o nome ainda levantou-se e falou em um doce e largo tom:
– Ele é bonzinho, só está como todos vocês: estressados. Não olhem assim pra ele.
Sentei-me e comecei a rir da situação, e com ar de riso, não de impaciência, disse:
– E quem disse que estou estressado?
Ela riu, e o riso pareceu contagiar os que estavam como eu, a esperar pelo ônibus. As pessoas começaram a rir sem ter bem por que. Quando a crise de riso passou, ela voltou-se para mim e perguntou, ainda rindo por dentro:
– E o que te faz tão estressado, tão insatisfeito, tão resmungão?
– Ah, as mesmas coisas de todo mundo... O cansaço, as chatices de fazer o que não se gosta, a frustação de nunca fazer nada certo de verdade, aquelas coisas de adulto. Você não vai entender...
– Que mania de vocês de complicarem tudo!
– Não é bem complicação, é que certas coisas são necessárias...
– Eu sei disso, mas... É que vocês adultos se preocupam demais com coisas que nem são tão necessárias assim... Pelo menos não mais que um sorriso, um abraço, uma conversa... Você parecia que não tinha dado umas boas gargalhadas há muito tempo pelo desespero do riso!
Fiquei meio sem saber o que dizer nessa hora. E ainda estou meio desconcertado, mas sorri naturalmente (o que é raro acontecimento nesses meus 35 anos mal vividos) e disse:
– Tá! Você ganhou, adultos são chatos mesmo.
Nesse momento, o ônibus estava se aproximando da rodoviária.
– Disso eu já sei. Posso perguntar uma coisa antes de ir embora?
– Sim, claro. Ainda temos um tempo antes da troca de motoristas.
– Você tem um sonho?
– Tenho sim. Meu sonho é chegar à perfeição, fazer alguma coisa certa que seja certa.
– Pois desista. Arrume outro.
– Por quê? Perguntei assustado, imaginava que ela iria apoiar meu sonho, me dizer para seguir em frente. Então, ela me respondeu calmamente:
– Porque a perfeição dos adultos não é possível. Segundo vocês, perfeito é o que se deve ser, mas não se pode ser.
Acho que ela deve ter percebido meu semblante de interrogação e prosseguiu:
– Digo, vocês sempre querem ser algo que não são e por mais que se esforcem, não conseguirão ser o que querem.  E isso nada tem a ver com a vontade de melhorar sempre. Como você vai melhorar se não se deixa sorrir?
Não respondi coisa alguma, apenas guardei aquilo. O infeliz do ônibus já estava com os motores ligados e os passageiros já estavam embarcando. Era hora de ir. Levantei-me, disse um “até mais” e um obrigado mentalmente e me dirigi à fila para entrar no interurbano. Cheguei e me sentei à janela, ao lado de uma senhorinha simpática que faria gosto conversar se ela não tivesse um sono instantâneo. Só foi o tempo de acomodar-me na desconfortável cadeira e quando tornei a olhar, ela já havia caído no sono. Pus-me a rir dessas coisas imprevisíveis que acontecem no cotidiano. Naquela noite dormi e sonhei. Sim, sonhei. Sonhei que vivia, que corria, que sorria. É bom fazer isso de vez em quando.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

García Marquez e o Chocolate...

Ler Gabriel García Marquez é como saborear chocolate. Talvez seja um exagero desnecessário fazer essa analogia. Ou talvez seja loucura mesmo, já que uma coisa não tem nada a ver com a outra... Mas não seria na loucura que começam a se assemelhar?
Vou tentar explicar melhor. O que quero dizer é que a apreciação tanto de um como de outro te envolve numa atmosfera de loucura. Podem parecer absurdos, irreais e podem até o ser em alguns momentos. Mas certamente quando se toma contato, deixam impressões inesquecíveis, abstratamente reais. No fundo, sabe-se que é real, mas alguém “pincelou magicamente”, se posso assim dizer. São desconcertantes. Deliciosamente doces e perversos. Saborosamente doentios. E até descompromissadamente naturais, nada forçado.  
Os apreciadores compartilham do mesmo dilema. Querem experienciar, mas não querem que acabe. Últimas páginas e últimas mordidas... O importante é aproveitar essa magia e quando acabar, preparar-se para um novo título e um novo chocolate.
Após ler Do Amor e outros Demônios, fico a pensar se não seria o amor um demônio, se não seria a leitura um demônio, se não seria o chocolate um demônio...

Notas :
1) Existem restrições quanto ao consumo do chocolate. É bem sabido que não se deve consumir em demasia. Mas de vez em quando... Quanto à obra de Gabriel García Marquez, acredito que não haja restrições...
2) Refiro-me ao chocolate mesmo, nada de “alguma coisa de chocolate”.  Adoro chocolate, mas geralmente seus derivados não costumam me agradar...
3) Não leve muito a sério (se é que alguém lê isso), a analogia é ruim mesmo. E a palavra demônio do final não deve ser entendida literalmente, no sentido que se costuma atribuir à palavra. Foi só uma forma de externar uma impressão, fazendo ligação com o livro. Apenas um olhar mais demorado, mas nem por isso certeiro.

Alguém disse melhor... (2)

Não sei o motivo, mas esse é o meu poema preferido do Manuel Bandeira...

Desencanto


Eu faço versos como quem chora
De desalento.. de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo de nenhum pranto.


Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.


E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca


Eu faço versos como quem morre.

                                    Manuel Bandeira

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Anesthetize, Live In Tilburg

Dizem que Porcupine Tree é uma banda de rock progressivo. Não acho, rock progressivo para mim é outra coisa. Claro que há influências do gênero no som da banda, mas penso que essa “classificação” não caiba. Aliás, acho que “classificação” alguma é necessária, só é preciso dizer que o Porcupine Tree é uma ótima banda.
Em estúdio, a banda é mais que excelente. A produção, a masterização, a mixagem, os arranjos são impecáveis. É dado ao ouvinte a oportunidade de saborear cada detalhe. Em termos de áudio, a qualidade é indiscutível. Em termos musicais, ficar indiferente é impossível.
Ao vivo, a banda é simplesmente brilhante. Obviamente, as canções não são reproduzidas fielmente às gravações ao vivo. Mas quase. Algumas soam melhor ao show com o acréscimo de arranjos, com a mudança de uma determinada parte... Sem falar na competência dos músicos, no talento dos instrumentistas... Enfim, Porcupine Tree é simplesmente uma banda fantástica ao vivo.
Feitas as apresentações, vamos ao objetivo pretendido: tentar resenhar o DVD Anesthetize Live in Tilburg. O vídeo é o segundo registro ao vivo em DVD da banda, que consiste nas gravações de dois concertos realizados em Tilburg no ano de 2008. O setlist do show é basicamente o álbum Fear of a Blank Planet (maravilhoso, por sinal) por inteiro e algumas músicas de outros álbuns. É um setlist consistente, mas aos olhos dos fãs parece que sempre falta alguma(s) canção(ões)...
Já disse que em estúdio o áudio é impecável. Ao vivo não é diferente. Tudo em seu devido lugar. A iluminação é muito sutil, geralmente luz baixa, algumas cores em alguns momentos. Mas sem exageros. Uns telões compõem o ambiente, mostrando por vezes imagens conceituais, por vezes complementando a ambientação. A qualidade sonora e a qualidade visual fazem deste DVD uma produção belíssima. Complexo e simples ao mesmo tempo.
Também já falei que os músicos são bastante talentosos. Mas tenho que fazer algumas considerações acerca do que observei ao vivo. De início, tenho que ressaltar que, embora sejam instrumentistas habilidosos individualmente, funcionam como um grupo. Nenhum deles quer provar o quanto é bom no seu instrumento, apenas fazer parte da música. Nada contra quem quer mostrar suas habilidades instrumentais, mas a vaidade pode atropelar a música. Às vezes acho que as pessoas confundem virtuosismo com vaidade. Ainda bem que o Porcupine Tree não é assim. Apesar de o Steven Wilson ser o líder e principal compositor, todos os integrantes possuem uma parcela de culpa na banda. Até o John Wesley, que não é integrante oficial, eu vejo como parte do P.T. ao vivo. Ele é uma peça importante, não apenas um músico de apoio. Ótimo guitarrista e dono de uma voz que potencialmente poderia parecer pouca coisa, mas que se encaixa doce e perfeitamente nos momentos em que é colocada. Em linhas gerais, uma banda entrosada, que possui “química”. (N.A. Não gosto da palavra química, mas ela foi necessária aqui).
Passagens acústicas, momentos mais “pesados”, sons atmosféricos, texturas, arranjos de voz belíssimos, guitarras trabalhadas, baixo sólido e consistente, sintetizadores “viajantes”, bateria magnífica nos detalhes. Um pouco do que se vê nesse DVD.

Um registro ao vivo de uma banda de verdade. Pouca luz, algumas imagens ao fundo, amplificadores e equipamentos de som no palco, cinco músicos e seus instrumentos. Sem performances, apenas uma apresentação musical. Do jeito que costumo gostar.


Alguém disse melhor...

Sabe quando você lê algo e sente que aquilo sintetiza uma parte de ti?
Quando você queria dizer, mas alguém disse melhor...

Vai-se o hoje: uma cápsula
de fria luz que volta ao teu recinto
à sua mãe sombria, renascendo.
Deixou-o agora envolto em sua linhagem.
Dia, é verdade que participei na luz?
Tempo, sou parte de tua catarata?
Areias minhas, solidões!

Se é verdade que partimos,
fomos nos consumindo
em pleno sal marinho
e a golpes de relâmpago.
Minha razão têm vivido na intempérie,
entreguei ao mar meu coração calcário.

                                                  Pablo Neruda

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Into the Wild OST

Eis que finalmente tomo coragem para escrever sobre um dos meus companheiros dos últimos tempos, o álbum solo do Eddie Vedder. Into the Wild já é um velho conhecido, mas tem estado mais presente ultimamente em minhas audições por que... Não sei bem o porquê. Acho que já escrevi sobre isso no blog, que sofro de uma nostalgia musical, que de tempos em tempos algumas das minhas predileções artísticas me acompanham em certos momentos, ficam “descansando” um pouco e depois voltam trazendo outros sabores e a mesma paixão de outrora. Penso que esse seja o caso desse álbum.
Canções simples, curtas. Não há muitos timbres, não há várias texturas. Apenas violões (ou ukuleles) e a voz rouca e consistente do Vedder em grande parte do álbum. Poucos instrumentos, mas nenhum espaço vazio. As letras são belíssimas, os arranjos são cativantes. Introspectivo, sensível, bonito, instintivo, simples.
Deve ser pelo fato da voz do Eddie Vedder me acompanhar desde o final da minha infância nos mais variados momentos que tenho essa ligação com esse álbum. Essas canções são minha voz em determinados momentos. Ótimas amigas para àquelas horas nas quais se quer respirar, sentir um pouco à brisa, fugir das mentiras...
No filme, as canções encaixam-se nas cenas de modo a encher os olhos, ouvidos e coração. Por falar nisso, o filme é muito bonito, mas é assunto para outro post...
Minha canção preferida do álbum talvez seja Society, que não foi escrita pelo Eddie, mas a sua interpretação... Sou suspeita para falar! (fã de Pearl Jam) Acho que esta em especial reflete “meu estado de espírito” desses dias... "Oh, it’s a mystery to me /We have a greed with which we have agreed /And you think you have to want more than you need / Until you have it all you won’t be free/ Society, you're a crazy breed / Hope you're not lonely without me"...



P.S.: Já faz um tempo que não escrevo sobre algum disco aqui. A proposta (?) inicial do blog era estar voltado às resenhas musicais, mas as coisas tomaram vários rumos e ao mesmo tempo não tomaram rumo algum.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Deixa...

Deixa que o vento toque tua face,
Envolva teu corpo, te leve pra longe.
Deixa que a brisa susurre de leve,
Que a vida te pegue, te mostre um instante...

Deixa que o olhar te contente,
Que esteja presente, que saiba falar
Deixa que a voz não te escape,
Que seja liberta, ecoe no ar...

Deixa o sentir tomar conta de ti...
Por um momento deixa te deixar...
Deixa que venha o sentir sorrir...
Aprenda a não mais te deixar.
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