segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Glória Feita de Sangue


Glória Feita de Sangue, um dos primeiros trabalhos do Kubrick, apesar de não carregar o peso dramático de produções de outras guerras, consegue tocar em pontos importantíssimos para uma narrativa embasada em um conflito dessa natureza. Não atinge o espectador pelo sensacionalismo – embora possua momentos bastante sensíveis –, mas por expressar que uma guerra não é uma guerra.

Uma guerra não é uma guerra? Não, uma guerra não é uma guerra. Aquela imagem que se tem na cabeça desde a infância, de que numa guerra luta-se para combater o adversário, não é integralmente verdadeira. É nesse ponto em particular que o filme mostra a imensidão de sua tangência. Aqui, não se mostra o adversário. Todos os problemas se desenrolam dentro do próprio exército francês. É ilusório pensar que numa guerra, todos se juntarão para vencer o inimigo. Uma guerra não é uma guerra, é um jogo de interesses.

E esse jogo de interesses é mostrado de forma primorosa no filme. Quanto vale a reputação de um batalhão? Quanto vale a vida de um ser humano? Quem é glorificado nos bons sucessos? Quem paga pelos fracassos? Certamente, as respostas para essas perguntas não se tocam. Na película, três soldados “pagam” por uma missão (praticamente suicida) fracassada. A escolha aleatória dos soldados punidos me parece que não ter sentido aleatório. Apresentando deste modo, o realizador traça os objetivos reais da punição: ter quem punir. Alguém tem que ser “responsabilizado”, então que sejam os mais fracos. Simples assim.

O que traz beleza ímpar à produção é provavelmente o enfoque dado aos sentimentos humanos. Se de um lado a frieza é inevitável, do outro o sentir o é. O desespero, a raiva, a angústia tomam conta dos corações sensibilizados pelas injustiças. As cenas que precedem a execução dos condenados são no mínimo desconcertantes. Difícil não ser atingido pelas reações dos personagens diante das mortes anunciadas. No desfecho, a lembrança de humanidade nos soldados é resgatada de uma maneira belíssima: através da música. Só uma expressão carregada de sentimentos, como a música, é que nos faz lembrar, de tempos de tempos, que, sobretudo somos seres humanos.

Os caminhos da glória não são construídos pelos glorificados. A glória é feita de sangue. De sangue dos outros.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Ladrões de Bicicletas


Desde a simplicidade do título até a terrível simplicidade do final, a produção de De Sica não é outra coisa senão a angustiante busca de uma bicicleta roubada, pelas ruas de Roma, onde existe um vertiginoso, abismal mercado de bicicletas, no mais longo e impiedoso domingo que um homem possa ter vivido.” Gabriel García Marquez

Alguém pode dizer que o segredo de um bom filme está na genialidade do roteiro, na fotografia impecável, em belíssimas interpretações ou até mesmo na perfeita comunicação de texto, som e imagem. Certamente também é isso, mas não somente isso. Talvez o segredo esteja no que não se consegue precisar, no que não necessita de explicação para capturar mais do que os olhos do espectador.

A palavra que passeia por toda a extensão de Ladrões de Bicicletas é simplicidade. Vittorio de Sica apresenta um roteiro simples que consegue ser grandiosamente belo. Poderia ser a história de qualquer italiano tentando sobreviver no pós-guerra. Melhor dizendo, poderia ser a história de qualquer trabalhador que vive tentando sustentar a família. Situar o enredo em seu contexto histórico é importante para a análise, mas o caráter atemporal da produção também nos permite voltar o foco para outro aspecto. Voltaremos a luz para algo menos amplo.
A busca incessante pela bicicleta – o meio de sustento – não se apresenta como uma corrida desesperada nem como um apelo dramático. Ladrões de Bicicletas vai tocando nas feridas devagar, tanto nos problemas referentes ao homem enquanto ser social como enquanto indivíduo. Tenho a pretensão de dizer, que há humanidade dentro da tela. Todos nós temos um pouquinho de Ladrões de Bicicletas em nosso cotidiano. Modificando um clichê, não é a vida como ela é, é a vida como ela se mostra.
As interpretações não são nem um pouco teatrais. Pelo contrário, são bastante cotidianas. Este talvez seja o motivo da beleza. Presumo que não funcionaria se essa simplicidade fosse substituída pelo perfeccionismo erudito. O filme precisa de naturalidade para contar o que deseja. As interpretações transbordam essa naturalidade. A que mais emociona, não poderia ser mais simples e natural. A atuação do garoto é de segurar para não chorar. É ele quem nos presenteia com os melhores momentos da película.
Em torno da bicicleta, a vida de um homem. Em torno da bicicleta, um homem. Em torno da bicicleta, a vida. Impossível ficar indiferente.


The King of Limbs: Hermético, demasiado hermético


O barulho de um lançamento do Radiohead é inevitável. Os álbuns que sucederam o Ok Computer tenderam a ser recebidos com muito alarde. O que esperar do sucessor do In Rainbows então?
Escrever algo sobre o Radiohead é um caso complicado. Uma banda superestimada. Ótima banda, ótimos músicos. Apenas. Atribuir a eles pioneirismos relevantes ou a responsabilidade de uma “revolução musical” é exagero. O Ok Computer é um disco maravilhoso, mas não divide o tempo em antes e depois do álbum. O Kid A não é a obra-prima do milênio. O Amnesiac se assemelha a uma compilação de B-sides. O Hail to the Thief não é o retorno majestoso às guitarras. O In Rainbows é bom, mas grande parte do alarde engendrado por ele é proveniente da jogada de mestre de sua distribuição. Boas produções, com vários momentos bons e uns poucos ruins.
The King of Limbs vem pra romper com quase quatro anos de jejum de um álbum de inéditas. Chega devagar, carregado por minimalismos, marcado majoritariamente pelo eletrônico e pontuado por texturas peculiares. Depois, a melodia aparece e traz os melhores momentos do álbum. Pena que quando a simplicidade consegue o que o experimentalismo não conseguiu fazer, o álbum já está quase no fim.
O experimentalismo é uma faca de dois gumes. A linha que separa a “liberdade criativa experimental” do “experimentalismo pelo experimentalismo” é bastante frágil. Fugir do usual não é problema. O problema é quando essa fuga deixa a essência fugir. Apresentando dessa forma, parece que é algo particular do experimentalismo. Não é. É algo que toca uma vastidão de temas. Muitas vezes o que parece essencialmente normal, sem espaços vazios, deixa escapar a essência. Minhas insatisfações com o álbum rumam para este ponto: a ausência de essência melódica em grande parte de sua extensão.
É puramente uma questão de gosto pessoal o fato de o álbum me parecer estranho aos ouvidos. E isso não é por falta de experiência auditiva, é que não consigo me aproximar da peças musicais que apresentam essa orientação. A absorção é estranha. Talvez a explicação para esse distanciamento seja meu primor pela melodia. Embora aprecie com certa intensidade a utilização de texturas – largamente utilizadas no álbum –, não as desligo de outros aspectos. Textura por textura somente não funciona. Para mim, experimentalismo por experimentalismo também não. The King of Limbs não é experimental injustificadamente, mas em vários momentos deixa faltar essência melódica.
Faixa-a-faixa:
Bloom
Claustrofobia. Minimalismo em todos os canais, uma confusão sonora pontuada pela voz do Thom Yorke, muitos sintetizadores, uma linha percussiva repetitiva... Claustrofobia é a sensação.
Morning Mr Magpie
Estática, apesar dos movimentos.
Little By Little
Interessante. Ótima harmonia instrumental. Mas ainda me parece estranha os ouvidos.
Feral
Confusa. Base eletrônica e muitos ruídos.
Lotus Flower
A quase-balada do álbum.
Codex
Quando o piano introduziu a minha primeira audição, pensei que seria algo parecido com Videotape. Mas não. Surpreendi-me positivamente. É nesse ponto do álbum onde se recupera a essência melódica que traz o brilho para o álbum. É na simplicidade que Codex vence o ouvinte.
Give Up The Ghost
A anterior já teria feito valer o álbum. Mas a coisa ficou melhor. Give Up The Ghost nos presenteia com sua singela beleza. Transcorre naturalmente, a repetição não é problema.
Separator
A faixa que chega para encerrar esse curto álbum é até simpática, mas falta alguma coisa... Final inconcluso.

Só o tempo dirá se essa descontinuidade melódica enriquecerá ou desfigurará os detalhes sonoros. No fim, de nada valem “produções geniais” que não conseguem comunicar. Esse é o problema da tendência contemporânea de robotizar a música: falta de essência, incomunicabilidade. Seria esse o caso do Radiohead? Para álbuns desse tipo, um tempo de maturação auditiva é necessário.
The King of Limbs: Hermético, demasiado hermético. Aqui, o hermetismo não é por falta de compreensão, é por falta de absorção. Ou para alguns – e nesse ponto me incluo? – por falta do que compreender.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

A Janela de Godard: Demônio das Onze Horas


Falar de Godard é complicado. Muita gente torce o nariz, insiste que é demasiado chato, arrogante, pretensioso. Talvez seja isso mesmo ou algo aproximado. Mas isso não importa, porque chato não implica que seja ruim, legal não significa que seja bom. Depende do ponto de vista.
Demônio das Onze Horas (Pierrot le Fou) é um romance policial nem tão romântico assim. Não parece nem de longe com os romances contemporâneos famosos. Nem tão pouco quanto aos policiais.
Sem grandes intrigas, sensacionalismos ou pieguices. Diria que é complicado pela sua descomplicação. O que normalmente estamos habituados a ver na tela são personagens “super-heróis”, bastante complexos, recheados de conflitos. Em geral, é claro. Não são poucas as produções que se distanciam dessa estética “Liga da Justiça” (ou Liga do Amor, como preferirem) como também não são poucas as que voltam sua luz cinematográfica para isso. E isso nada tem a ver com a possibilidade real de o personagem existir no mundo tangível, vulgo “fora da tela”. Tem a ver com jogar informações – que de início seriam “incríveis” para os espectadores, mas que no fundo não conseguem se justificar – nos personagens e no próprio filme e esquecer a essência, o modo como as coisas são apresentadas.
Pode-se pensar que Godard “joga” informações, mas não vejo dessa forma. Mesmo os momentos “desconexos” não são construídos nem desconstruídos com o simples depósito de informações. Não se esbarra em justificativas rasas porque nem tudo precisa ser justificado. Neste filme em particular, sinto os personagens passearem por seus caminhos e descaminhos de forma leve, como se fossem parte de uma brisa confusa. Sem muita perfeição, seguimos a estrada com Marianne e Ferdinand, um com mais parafusos fora do lugar que o outro, numa viagem agradabilíssima.

O filme é recheado de referências, de fragmentos cinematográficos para falar de outros assuntos ou do próprio cinema. É aqui onde a marca de Godard aparece, nessa brincadeira com a metalinguagem, onde as dúvidas são provocadas sem necessariamente levar a respostas. O capitalismo, assim como o modo de vida da sociedade da época – que estão intimamente interligados – são questionados de forma mais sutil do que em outras produções desse mesmo realizador, mas continuam ali. Um dos meus momentos preferidos do longa é a encenação de uma pequena peça sobre a Guerra do Vietnã para um grupo de americanos. É uma passagem sarcasticamente deliciosa, muito bem executada, muito bem articulada. Divertidíssima de ser vista, principalmente quando percebemos o teor de crítica introduzido numa representação da guerra para os americanos.
Eu não poderia separar-me das minhas impressões para externar expressões do filme. Digo, por mais que eu tente tornar as análises impessoais, sempre haverá resquícios passionais. E para os filmes do Godard dificilmente funcionaria de outra forma. Demônio das onze horas é um refúgio para os parafusos soltos... Uma deliciosa película repleta de belas interpretações, de descaminhos que não levam a lugar algum, mas trazem bons instantes.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Diálogo

A vida olhou para mim:
- Não me deixes.
Abri os olhos:
- Não te deixareis, nunca!
Ela sorriu:
- Ainda bem.
Devolvi o sorriso.
- Não vás embora.
Nesse momento, a vida me abraçou:
- Estou aqui.

Dez Minutos Mais Velho


  
  O que é o tempo? Essa indagação carrega outra. Como poderíamos precisar a definição de tempo sem nos perguntar como o vemos? O conceito de tempo esbarra na nossa significação do mesmo. Se não esbarrar, o conceito possivelmente é raso, impessoal.

  Dez Minutos mais Velho (Ten Minutes Older), projeto concebido por Nicolas McClintock, é uma película que reúne vários curtas de diversos diretores, onde cada um apresenta suas impressões sobre o tempo. Melhor dizendo, suas visões sobre o tempo. Quinze diretores participam, sendo sete no primeiro (The Trumpet) e oito no segundo (The Cello).

  Apesar de estarem ligados por um mesmo tema, os curtas exploram várias direções. Embora apresentem apenas dez minutos de duração, permitem ao espectador um olhar mais demorado. No geral, são belas produções que conseguem traçar distintos caminhos sobre um mesmo tema. Cada um tem suas particularidades, as fotografias são bem diferentes umas das outras, o enfoque não é o mesmo, as construções são bastante diferenciadas. Isso é muito interessante. A cada dez minutos, uma nova descoberta para o espectador.

  Segundo Gabriel García Marquez, um conto ou anda ou desanda. Penso que isso acontece com os curtas. Ou andam ou desandam. Nos longas, como o tempo é maior, uma desviada de atenção pode não comprometer. Mas se o curta destoa em algum momento, é bem provável que ele desande. Observei isso – tenho que ressaltar que é uma opinião pessoal – em um curta em especial. “Vers Nancy”, de Claire Denis, desanda não porque a proposta seja ruim ou que não tenha momentos bons (o final é interessantíssimo). Desanda porque se apresenta demasiado enfadonho e acaba cansando o espectador. Dez minutos parecem demorar muito mais. Outra façanha do tempo: ele parece não se importar muito com a nossa contagem.

  Com exceção do citado acima, os outros se mostraram muito bons, pelo menos sob minha ótica. Menções honrosas para Lifeline (Victor Erice), Ten Thousand Years Older (Werner Herzog) e 100 Flowers Hidden Deep (Chen Kaige) no The Trumpet e Histoire d'eaux (Bernardo Bertolucci), The Enlightenment (Volker Schlöndorff) e Dans le noir du temps (Jean Luc-Godard) no The Cello. Excelentes, surpreendentes.

  O que é o tempo? Não sei. Embora não tenha a pretensão de obter uma resposta, aprecio refletir sobre ele. E se essa reflexão acompanhar belas produções cinematográficas, fica muito melhor. Dez Minutos mais Velho é uma ótima companhia.
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